quarta-feira, 5 de junho de 2013

Recordações

O post de hoje é um diálogo entre um texto do Antônio Prata que saiu na Folha de São Paulo, e uma resposta ao texto, escrito pelo meu querido amigo Henrique Silvério e compartilhado no Facebook. 
Ambos inundados de sensibilidade.
Recordação
Por Antônio Prata
'Não faz sentido, pra que que a pessoa quer gravar as coisas que não são da vida dela e as coisas que são, não?'
"Hoje a gente ia fazer 25 anos de casado", ele disse, me olhando pelo retrovisor. Fiquei sem reação: tinha pegado o táxi na Nove de Julho, o trânsito estava ruim, levamos meia hora para percorrer a Faria Lima e chegar à rua dos Pinheiros, tudo no mais asséptico silêncio, aí, então, ele me encara pelo espelhinho e, como se fosse a continuação de uma longa conversa, solta essa: "Hoje a gente ia fazer 25 anos de casado".

Meu espanto, contudo, não durou muito, pois ele logo emendou: "Nunca vou esquecer: 1º de junho de 1988. A gente se conheceu num barzinho, lá em Santos, e dali pra frente nunca ficou um dia sem se falar! Até que cinco anos atrás... Fazer o que, né? Se Deus quis assim...".

Houve um breve silêncio, enquanto ultrapassávamos um caminhão de lixo e consegui encaixar um "Sinto muito". "Obrigado. No começo foi complicado, agora tô me acostumando. Mas sabe que que é mais difícil? Não ter foto dela." "Cê não tem nenhuma?" "Não, tenho foto, sim, eu até fiz um álbum, mas não tem foto dela fazendo as coisas dela, entendeu? Que nem: tem ela no casamento da nossa mais velha, toda arrumada. Mas ela não era daquele jeito, com penteado, com vestido. Sabe o jeito que eu mais lembro dela? De avental. Só que toda vez que tinha almoço lá em casa, festa e alguém aparecia com uma câmera na cozinha, ela tirava correndo o avental, ia arrumar o cabelo, até ficar de um jeito que não era ela. Tenho pensado muito nisso aí, das fotos, falo com os passageiros e tal e descobri que é assim, é do ser humano, mesmo. A pessoa, olha só, a pessoa trabalha todo dia numa firma, vamos dizer, todo dia ela vai lá e nunca tira uma foto da portaria, do bebedor, do banheiro, desses lugares que ela fica o tempo inteiro. Aí, num fim de semana ela vai pra uma praia qualquer, leva a câmera, o celular e tchuf, tchuf, tchuf. Não faz sentido, pra que que a pessoa quer gravar as coisas que não são da vida dela e as coisas que são, não? Tá acompanhando? Não tenho uma foto da minha esposa no sofá, assistindo novela, mas tem uma dela no jet ski do meu cunhado, lá na Guarapiranga. Entro aqui na Joaquim?" "Isso."

"Ano passado me deu uma agonia, uma saudade, peguei o álbum, só tinha aqueles retratos de casório, de viagem, do jet ski, sabe o que eu fiz? Fui pra Santos. Sei lá, quis voltar naquele bar." "E aí?!" "Aí que o bar tinha fechado em 94, mas o proprietário, um senhor de idade, ainda morava no imóvel. Eu expliquei a minha história, ele falou: Entra'. Foi lá num armário, trouxe uma caixa de sapatos e disse: É tudo foto do bar, pode escolher uma, leva de recordação'."

Paramos num farol. Ele tirou a carteira do bolso, pegou a foto e me deu: umas 50 pessoas pelas mesas, mais umas tantas no balcão. "Olha a data aí no cantinho, embaixo." "1º de junho de 1988?" "Pois é. Quando eu peguei essa foto e vi a data, nem acreditei, corri o olho pelas mesas, vendo se achava nós aí no meio, mas não. Todo dia eu olho essa foto e fico danado, pensando: será que a gente ainda vai chegar ou será que a gente já foi embora? Vou morrer com essa dúvida. De qualquer forma, taí o testemunho: foi nesse lugar, nesse dia, tá fazendo 25 anos, hoje. Ali do lado da banca, tá bom pra você?"


Sobre o Recordação
Por Henrique Silvério

SOBRE O " RECORDAÇÃO", DA FOLHA DE SP
Sobre o texto que tá todo mundo curtindo, esse que o cara desce ao lado da banca, sempre pensei muito parecido. 

Talvez eu seja um pouco, ou muito apático com as coisas, mas é que não me importo com as datas comemorativas, as minhas. As dos outros me importo porque as pessoas ficam felizes ao serem lembradas, mas as minhas não. Porque o dia da minha formatura não foi o dia mais importante do meu período de faculdade. Os outros dias dos 5 anos foram todos mais importantes e mais legais, os dias de pegar carona com a Si, assistir Friends com a Mari, levar foras da Bina, essas coisas.
 
Da infância, mais que os aniversários, me lembro das noites de sair pra comer pizza, de comer paçoca no parque da Dona Tilinha com meu pai. Quando tive meu escritório de arquitetura, nunca fiz um grande projeto que tenha me dado orgulho, mas nos projetos pequenos e às vezes vergonhosos, a melhor coisa era ver os clientes sorrindo porque tinham realizado algo que esperaram por anos.

Lembro mais das meias de raquetes que ganhei da D. Sônia que dos projetos propriamente ditos. O caminho às vezes, ou quase sempre, é melhor que a chegada, e das coisas que fazem nossa vida, é comum dar valor quando perdemos. Mas isso todo mundo já sabe, todo mundo já disse. Só se esquece de viver.
 
Do meu pai, talvez o que mais me doa é nunca ter dito em palavras o quanto gostava dele, apesar de saber que ele sabia. Depois de um tempo (muito tempo), sei que é melhor falar, é melhor mostrar, é melhor agir. O dia que passou não volta mais, posso fazer amanhã, mas o que teria feito ontem não dá mais, foi ontem.

As vezes fico quieto demais, cansado, meio triste, falo muita coisa pra uns e fico além da conta com outros, não devia, mas acontece. Não dá tempo de abraçar todo mundo, devia dar. 
As coisas não podem passar em branco, algumas até podem, vazio e silêncio fazem parte, mas não pode ser por muito tempo, tem que ter "coisas".

Só sei que, mesmo quebrando a cara muitas vezes, ainda prefiro tentar me expor e saber que não passou em branco.
 
Dos amigos e parentes com quem não consigo falar e viver tanto, saibam que não os amo menos, só tá faltando conseguir sentar no bar pra fazer a foto com avental.