quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Sobre palmadas e autoridade

"INFELIZMENTE, APENAS AS CRIANÇAS AINDA APANHAM COM O CONSENTIMENTO SOCIAL. NÃO É ESTRANHO ISSO?"

O psicólogo João David Mendonça atua na área de terapia de família, é professor e supervisor clínico do Familiare Instituto Sistêmico em Florianópolis/SC. Também - e não menos importante - é pai do Felipe, de 4 anos, e do Henrique, que nasce em julho! Escreve sobre psicologia, terapia e coisas da vida no blog Psicojd.

Nessa entrevista ele nos ajuda, com muita lucidez, a entender sobre algumas questões ligadas à violência doméstica, principalmente a que atinge as crianças. 

Frase de João David Mendonça usada em um meme da fanpage do movimento Bater em Criança é Covardia (www.facebook.com/SemPalmadas)




Sabemos que alguns dos pais que dão palmadas em seus filhos nunca questionaram o porquê desse comportamento. Porém alguns deles, quando se deparam com informações e campanhas contra a violência doméstica, assumem uma posição agressiva, direcionando comentários raivosos à problemática. Por que isso acontece?

Talvez porque seja um tema que os remete às suas próprias experiências emocionais da infância. Muitos dos que são pais hoje apanharam quando crianças. Para muitos desses pais, pensar na possibilidade de educar os filhos de maneira diferente (e até melhor) pode soar como um desrespeito ou como uma deslealdade aos próprios pais.

Entre as pessoas que batem nos filhos há um discurso muito comum: agradecem pelas palmadas que levaram de seus pais, e colocam nelas a responsabilidade por serem pessoas de bem.

Na terapia de família trabalhamos com um conceito de “lealdades invisíveis”, desenvolvido pelo psiquiatra húngaro Ivan Borzomenyi Nagy. Tais lealdades são vistas como forças secundárias que regulam nossos comportamentos e nossos pensamentos, como se fossem compromissos invisíveis internalizados a partir da fantasia de que agir ou pensar diferente poderia colocar em risco a manutenção da relação ou da imagem de seus pais ou cuidadores. Assim, é tão importante, para muitas destas pessoas, que as palmadas sejam consideradas como “boas lembranças” e até mesmo repetidas em seus próprios filhos. Propor um caminho de educação que saia deste padrão pode ser uma ameaça, e por isso tal idéia é muitas vezes rechaçada com forte reatividade.


É comum ainda ouvir argumentos como "Eu apanhei quando era criança e não me tornei uma pessoa violenta". Que outros tipos de desculpas os agressores utilizam para justificar surras?

Acho que são mais que “desculpas”, são crenças fortemente enraizadas que sustentam o danoso hábito da punição física. Dentre estas crenças, dou alguns exemplos:
. Bato para o seu próprio bem, porque amo meu filho e quero o melhor para ele;
. Bato para mostrar a minha autoridade;
. Bato porque a palmada é um meio de impor limites na criança;
. Bato porque uma criança precisa ser castigada e corrigida de seu erro para não sofrer mais tarde;
. Bato para disciplinar a criança e ensiná-la sobre o que é certo e o que é errado.
. Bato para ser obedecido.
. Bato porque a criança não tem capacidade para entender uma conversa.

O desafio de nossa geração é compreender que todos estes objetivos citados poderiam ser alcançados por outros caminhos que não o da violência física. É interessante constatar que nossa sociedade já conseguiu proibir os escravos de apanhar, já criou leis rigorosas para defender as mulheres, já não bate mais nos seus "loucos", já criou instituições de defesas dos índios, já considera crime a tortura de prisioneiros, já luta contra o mau trato aos animais. Infelizmente, apenas as crianças ainda apanham com o consentimento social. Não é estranho isso?



A criança que apanha (mesmo que de leve) apresenta comportamento diferente daquela que nunca levou um tapa sequer?

Vale lembrar que não existe criança perfeita, que obedece o tempo todo, que não chora nem faz birras, que não tem suas próprias opiniões, que não buscam testar os seus pais. Ou seja, criança é criança e ponto final.

Porém, uma criança que apanha tende a ser mais agressiva no trato com seus iguais, pode desenvolver o hábito de morder os outros, apela mais facilmente para brigas como meio de conseguir o que quer, utiliza tapas nas suas relações com outras crianças, tende a reproduzir atitudes de agressão batendo nos irmãos.

Tais comportamentos podem aparecer em maior ou menor grau, dependendo de outros fatores como a frequencia com que a criança apanha, seu temperamento e personalidade, se há outras pessoas que servem como referências positivas, etc.

Além destes comportamentos, podemos pensar em muitas outras consequências que podem se manifestar, como baixa auto-estima, vergonha, raiva, sensação de impotência, sentimento de rejeição, medo, confusão, etc.

É um equívoco muito comum acreditar que criança que não apanha vai apresentar problemas mais tarde. É exatamente o contrário: crianças que costumam ser “corrigidas” ou “ensinadas” à base de força bruta estão mais vulneráveis a adotar comportamentos transgressores e agressivos do que outras que são criadas num cultura de não agressividade.



Você diz que "a palmada, ao contrário de afirmação de autoridade, é consequência da sua ausência." Qual a melhor maneira de demonstrar autoridade sem ameaçar a integridade da criança?

Diferentemente de como alguns comumente pensam, a autoridade parental não está presente num ato isolado, como a palmada por exemplo. A autoridade genuína encontra-se no modo como a relação pais/filhos está baseada. Alguns pais acreditam que bater é uma maneira de demonstrar autoridade. Eu tenho insistido que não, que bater é, ao contrário, o sinal de que o pai não sabe mais o que fazer, perdeu a capacidade de raciocinar e de estabelecer-se como autoridade na vida de uma criança.

É claro que toda criança vai confrontar seus pais, vai desobedecer, vai fazer birras. A diferença está na maneira como os pais vão responder a este confronto. Se respondem com tapas ou palmadas, perdem a oportunidade de mostrar quem é o adulto da situação, e quem é ali a autoridade para enfrentar a adversidade.

Creio que algumas maneiras mais autênticas pelas quais os pais podem mostrar sua autoridade são:
. Autoridade pela presença. Estar presente e interessado na vida do filho é um modelo de autoridade;
. Autoridade pelo exemplo. Se o pai responde com um ato violento, o exemplo que ele dá é o da violência, mesmo que ele diga que “dói mais nele que no filho”. Crianças seguem modelos, não discursos;
. Autoridade pela firmeza. Quando um pai fala ou repreende com assertividade, passa segurança ao filho;
. Autoridade pela relação de afeto. A criança sente-se muito mais envolvida com o adulto quando ela sente-se respeitada por ele na sua identidade, o que possibilita a ampliação do afeto mútuo.

Tais manifestações de autoridade não agridem nem ameaçam a criança, e contribuem para fortalecer seu nível de confiança em seus cuidadores.



"Eu bati no meu filho, mas me arrependi e não quero fazer de novo." Como trabalhar essa questão com os pais e com os filhos?

Acho ótimo terminar a entrevista com esta visão positiva, que há muitos pais que desejam um novo tipo de relacionamento com seus filhos. Neste caso considero importante, em primeiro lugar, trabalhar com a idéia do reconhecimento de nossas imperfeições. A paternidade / maternidade é um aprendizado constante. Quando estamos aqui falando a respeito dos riscos de uma educação baseada em palmadas, não queremos que os pais se sintam incompetentes, culpados ou confusos. Não há uma pílula mágica capaz transformar todos nós em pais perfeitos, infalíveis e sem máculas. Temos então que nos permitir errar, pois nem sempre estamos prontos para acertar.

Porém, creio que um segundo passo é importante neste processo: dar-nos conta de que possuímos uma incrível capacidade para mudar e nos transformar. Sem dúvidas, o caminho da educação sem tapas e palmadas é bem mais difícil. Exige dos pais muito mais tempo, paciência, sabedoria, auto-controle, e especialmente o exercício de seus próprios limites para não “perder as estribeiras”. Afinal, como um pai pode ensinar limites a um filho, se ele mesmo não consegue controlar os seus próprios limites em um momento de contrariedade?

A educação pela paz é muito mais que uma regra de conduta; é uma postura. Se é uma postura, quando nos conduzimos de maneira equivocada, podemos percebê-la e imediatamente retomar o rumo. Se num lampejo de imperfeição, comum a todos nós pais, e dominados pela irritação ou fúria, apelamos no passado para algum tipo de punição física, é possível restabelecer a consciência de que este não é o modo preferível de nos relacionarmos com nossos filhos.

Aos que percebem o erro, resta-lhes o desafio de levantar a cabeça e continuar lutando para manter a postura de não violência, especialmente porque o que eles mais desejam é o bem de seus filhos.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Rubem Alves para o Dia dos Pais

Era uma sessão de terapia. "Não tenho tempo para educar a minha filha", ela disse. Um psicanalista ortodoxo tomaria essa deixa como um caminho para a exploração do inconsciente da cliente. Ali estava um fio solto no tecido da ansiedade materna. Era só puxar um fio... Culpa. Ansiedade e culpa nos levariam para os sinistros subterrâneos da alma. Mas eu nunca fui ortodoxo. Sempre caminhei ao contrário na religião, na psicanálise, na universidade, na política, o que me tem valido não poucas complicações. 

O fato é que eu tenho um lado bruto, igual àquele do Analista de Bagé. Não puxei o fio solto dela. Ofereci-lhe meu próprio fio. "Eu nunca eduquei meus filhos...", eu disse. Ela fez uma pausa perplexa. Deve ter pensado: "Mas que psicanalista é esse que não educa os seus filhos?". "Nunca educou seus filhos?", perguntou. 

Respondi: "Não, nunca. Eu só vivi com eles". 

Essa memória antiga saiu da sombra quando uma jornalista, que preparava um artigo dirigido aos pais, me perguntou: "Que conselho o senhor daria aos pais?". 

Respondi: "Nenhum. Não dou conselhos. Apenas diria: a infância é muito curta. Muito mais cedo do que se imagina os filhos crescerão e baterão as asas. Já não nos darão ouvidos. Já não serão nossos. 

No curto tempo da infância há apenas uma coisa a ser feita: viver com eles, viver gostoso com eles. Sem currículo. A vida é o currículo. Vivendo juntos, pais e filhos aprendem. A coisa mais importante a ser aprendida nada tem a ver com informações. Conheço pessoas bem informadas que são idiotas perfeitos. O que se ensina é o espaço manso e curioso que é criado pela relação lúdica entre pais e filhos". Ensina-se um mundo! 

Vi, numa manhã de sábado, num parquinho, uma cena triste: um pai levara o filho para brincar. Com a mão esquerda empurrava o balanço. Com a mão direita segurava o jornal que estava lendo... Em poucos anos, sua mão esquerda estará vazia. Em compensação, ele terá duas mãos para segurar o jornal.

Rubem Alves, do livro "Ostra Feliz Não Faz Pérola", Editora Planeta