quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O ponto de vista da criança

Li ontem e compartilho com os leitores do blog:

Uma história contada pela escritora americana Astrid Lindgren ilustra de maneira afetiva a irracionalidade do castigo físico e de como ele é visto pelos olhos de uma criança.

Certa vez, uma senhora contou que quando era jovem não acreditava no castigo físico como uma forma adequada de educar uma criança, apesar do pensamento comum da época incentivar o uso de um fino galho de árvore para corrigir a criança.

Um dia, o seu filho de 5 anos fez alguma coisa que ela considerou muito errada e, pela primeira vez, sentiu que deveria dar-lhe um castigo físico. Ela disse para ele que fosse até o quintal de sua casa e encontrasse uma varinha de árvore e trouxesse para que ela pudesse aplicar-lhe a punição.

O menino ficou um longo tempo fora de casa e quando voltou estava chorando e disse para a mãe: “Mãezinha, eu não consegui achar uma varinha, mas achei uma pedra que você pode jogar em mim”.

Imediatamente a mãe entendeu como a situação é sentida do ponto de vista de uma criança: se minha mãe quer bater em mim, não faz diferença como e com o quê; ela pode até fazê-lo com uma pedra.

A mãe pegou seu filho no colo e ambos choraram abraçados. Ela colocou aquela pedra em sua cozinha para lembrar sempre: nunca use violência.

[Extraído de artigo de Lidia Natalia Dobrianskyj Weber, "Relacionamento entre pais e filhos: entre tapas e beijos", Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná.]


sábado, 24 de dezembro de 2011

Dados

Alguns dados de pesquisa para quem se interessar:

"Pesquisas realizadas com o objetivo de relacionar o recebimento de punição corporal com alguma variável comportamental da criança encontraram prejuízos para o desenvolvimento infantil: as crianças que apanhavam (comparadas com as que não apanhavam) apresentaram
auto-estima mais baixa (Larzelere, Klein, Schumm, & Alibrando, 1990),
comportamento mais agressivo (Stormshak, Bierman, McMahon, & Lengua, 2000; Strassberg, Dodge, Pettit, & Bates, 1994),
altos níveis de sintomas psiquiátricos e
baixo bem-estar geral (Bachar, Canetti, Bonne, DeNour, & Shaley, 1997)."

[L.N.D. Weber et al. "O uso de palmadas e surras como prática pedagógica", in Estudos de Psicologia 2004, 9(2), 227-237]


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O que se quer e o que se consegue

Esse Estado é um intrometido

Esse Estado é mesmo um intrometido!

Quero ter a minha liberdade para fumar, e o Estado me proíbe de acender meu cigarro em um monte de lugares. Insiste em tentar me convencer que fumar é prejudicial à saúde. Mas por que o Estado tem que interferir na minha saúde? Afinal, cabe apenas a mim a decisão de fazer o que eu quiser com meu corpo.

Dia desses o Estado inventou uma tal Lei Maria da Penha, só para se meter também na minha vida conjugal. Será que ele nunca ouviu falar que em briga de marido e mulher ninguém mete a colher? Agora não posso nem dar uns tapas na minha patroa, e lá vem a Maria da Penha pegar no meu pé.

E tem mais. Quem o Estado está pensando que é quando interfere no que eu faço dentro do meu próprio carro, obrigando-me a usar cinto de segurança? Ameaça-me com multas se eu não obedecer esta lei horrorosa, restringindo a minha liberdade de andar sem estar preso a um acessório.

E essa você não vai acreditar: não satisfeito em sua mania de interferir na minha vida privada, ele resolveu me proibir de dirigir meu próprio veículo caso eu tenha ingerido um pouco de álcool. Todo cidadão de bem sabe que isto é intervenção do Estado, é um absurdo que precisa ser condenado por nós cidadãos do bem.

Agora, sabe da última dele? Quer se meter com as minhas crianças também!

Chega dessa interferência estatal na minha vida!!!


---------------

Agora falando sério. Que bom seria se não fosse preciso elaborar leis para proibir pessoas de dirigir bêbadas, se não houvesse necessidade de leis para proteger as mulheres, que maravilha se as pessoas não jogassem fumaça no ar que eu respiro, se não existisse gente maltratando animais.

Mas infelizmente...


quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Agradecimento e mais algumas idéias

Meu agradecimento a todos que têm participado e dado a sua contribuição ao debate que me propus a fazer a partir do meu blog e dos meus perfis no Facebook e Twitter.

Estou tendo alguma dificuldade para responder os vários emails que tenho recebido nestes últimos dias, mas na medida do possível vou respondendo a todos.

A bem da verdade, não tenho muito ânimo para ficar debatendo cada ponto de algumas mensagens, pois percebo que uma grande parte das pessoas que me escrevem não pretendem mudar suas posições, mas apenas querem ter o direito - legítimo, diga-se de passagem - de discordar ou me corrigir.

Fico feliz ao perceber que não estou sozinho em minhas idéias, e muito satisfeito quando vejo que no meio cristão, que foi meu alvo em um dos textos, também existem pessoas lutando para educar seus filhos impondo limites sem empregar o expediente da palmada, seja ela forte ou fraca.

Tenho recebido também algumas mensagens extremamente indelicadas e malcriadas, de pessoas cuja desqualificação da opinião alheia é seu único argumento. A estas não perco tempo em dar resposta, apenas as deleto.

Por último, preciso compartilhar com vocês que minha posição a respeito deste tema leva em consideração o fato de que nenhum pai é perfeito. Pais são humanos e humanos não são robôs. Têm emoções, perdem a paciência, ficam cansados, frustram-se.

A minha defesa contra a punição física não é uma condenação impiedosa e antecipada dos pais comuns, não é uma cobrança de perfeição sobre alguém que a cada dia está aprendendo a ser pai ou mãe.

A parentalidade é um aprendizado constante.

Quem me conhece pessoalmente, e especialmente todas as pessoas e famílias as quais tive ou tenho a honra de atender, sabem muito bem a minha rejeição a qualquer circunstância ou regra que nos coloque em cobranças e exigências que ficam acima de nossas possibilidades.

Entretanto, estou convicto de que a educação pela paz é muito mais que uma regra de conduta; é uma postura. Se é uma postura, quando nos conduzimos de maneira equivocada, podemos percebê-la e imediatamente retomar o rumo.

Sendo bem honesto comigo mesmo e com os leitores, não posso garantir que nunca darei uma palmada no meu filho que hoje tem 4 anos. Afinal, eu e minha esposa somos humanos e consequentemente suscetíveis a falhas e imperfeições. O fato dele nunca ter levado nenhuma palmada, tapinha, ou qualquer punição física até o momento não é garantia de que nunca cairemos na tentação de resolver alguma situação difícil com uma palmada.

Mas somos conscientes de que esta não será a conduta de nossa preferência. Se errarmos, nos restará o desafio de levantar a cabeça e continuar lutando para manter nossa postura de não violência, especialmente porque queremos o bem de nosso filho.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Sugestão de leitura: Autoridade sem violência


Uma ótima notícia! A editora Artesã republicou em 2011 o livro "Autoridade sem violência: o resgate da voz dos pais", de Haim Omer. Considero este livro um excelente material para pais, terapeutas e educadores em geral.

Aqui vai um trecho da introdução:

Quase todos aceitam que, para criarmos bem as crianças necessitamos de firmeza e amor. O problema é que esta mistura se desfaz quando a criança tem problemas de comportamento. Nessas situações, os pais tendem a ser ou amorosos ou rigorosos, ou, às vezes, oscilam entre os dois pólos.

E o mesmo fazem os profissionais: alguns são campeões em empatia e aceitação e outros em regras e limites. Alguns entendem que firmeza e amor são necessários, mas, como fazer que ambos trabalhem juntos? A síntese entre firmeza e amor é vital para crianças com problemas de conduta. Mas essas crianças exigem tanta firmeza, que os pais têm dificuldades em expressar amor; e precisam de tanto amor, que a firmeza se dilui.

Nessas situações o amor frequentemente toma a forma de compensação, o que enfraquece a firmeza anterior; ou a firmeza assume a forma de rejeição, anulando a mensagem de carinho. Neste livro proponho uma forma de criar a síntese de firmeza e amor, através do conceito de presença parental. Penso, assim, apresentar um caminho legítimo para o resgate da autoridade parental.

O livro aborda os diversos aspectos da presença parental.

O capítulo I (Definição da presença parental) apresenta e ilustra o conceito.

O capítulo II (Presença parental à luz de outros enfoques) analisa o conceito da presença parental à luz das abordagens comportamental, sistêmica e humanística.

O capítulo III (Presença Ativa) descreve como os pais podem recuperar a capacidade de agir.

O capítulo IV ((Presença Sistêmica) lida com a influencia de outras pessoas (o outro cônjuge, pessoas da escola, familiares e amigos dos filhos) sobre a presença parental.

O capítulo V (Presença pessoal) descreve a perda e o resgate, pelos pais, de sua voz pessoal e única.

O Capítulo VI (Autoridade flexível) lida com o impasse e como supera-lo.

O capítulo VII (Envolver a criança na terapia) apresenta algumas maneiras positivas de incluir a criança na terapia, sem enfraquecer os pais.

O livro termina com uma avaliação do conceito de presença parental dos pontos de vista prático, teórico e ético.

Ao longo do livro incluí vários casos não bem sucedidos. Creio que a credibilidade do profissional sofre com a apresentação maquiada de terapias sempre bem sucedidas, quase mágicas. Tal tendência faz com que pais e profissionais fiquem despreparados para dificuldades e impasses.

Links para o livro:
Editora Artesã
Livraria do Psicólogo

Duas caixas

(por Rubem Alves)

Aprendi de Santo Agostinho que o nosso corpo carrega duas caixas.

Na mão direita, ele carrega uma caixa de ferramentas. Ferramenta é qualquer objeto que sirva para fazer alguma coisa: um martelo, um lápis, uma agulha, um fósforo, uma panela, uma fórmula de remédio, uma receita de cozinha. Todas as ferramentas são invenções da inteligência. Tudo o que se encontra na caixa de ferramentas é "útil", meio para se viver. As ferramentas nos dão poder. Os membros do nosso corpo, pernas, braços, mãos, olhos, coração, são todos ferramentas.

Na mão esquerda, o corpo carrega uma caixa de brinquedos. Brinquedos são coisas inúteis; não nos dão poder. Eles nos dão alegria: dançar, cantar, jogar futebol, contar piadas, tocar flauta, ler um poema...

Se sua caixa de ferramentas estiver cheia, mas a caixa de brinquedos estiver vazia, você será muito forte mas não terá alegria.

A arte de viver exige que carreguemos as duas caixas: a que nos dá meios para viver e a que nos dá razões para viver.

[Extraído do livro "Palavras para desatar nós", Rubem Alves, Ed. Papirus, 2011]


domingo, 18 de dezembro de 2011

Lei contra a punição física: Uma palavra aos cristãos que valorizam a Bíblia como orientação para a vida

A lei contra castigos físicos aprovada pela Câmara dos Deputados nesta semana tem provocado um intenso debate em muitos setores da sociedade. De maneira especial, o tema vem sendo negativamente repercutido entre alguns grupos cristãos, pois a lei estaria indo de encontro à orientação biblica no que se refere à educação infantil.

Os principais argumentos utilizados por alguns cristãos e líderes religiosos para criticar a lei estão baseados principalmente em textos do Antigo Testamento, em especial o livro de Provérbios, que cita várias vezes o uso da “vara” como medida educativa, dando a entender que bater nos filhos tem o aval divino.

O problema é que qualquer texto bíblico deve ser analisado à luz de seu contexto histórico, cultural e social. A tradição teológica contextual nos alerta para o risco de adotar interpretações legalistas e desconectadas de seu contexto imediato. Por esta razão encontramos muitas leis no Antigo Testamento que não são cumpridas hoje, pois sabe-se que tais leis faziam sentido apenas naquele momento, para aquela sociedade.

Exemplos? sacerdotes não podiam raspar a cabeça nem aparar as pontas da barba. Pessoas com deficiência física que não podiam oferecer sacrifícios a Deus por serem consideradas “defeituosas”. Comer carne de porco era proibido, assim como frutos do mar. Homens podiam vender suas filhas como escravas, mulheres não podiam pedir divórcio, e em caso de adultério seriam apedrejadas até a morte.

Enfim, eram leis que hoje aos nossos olhos são vistas como estranhas ou sinais de barbárie, mas estavam simplesmente de acordo com a mentalidade daquele tempo. Nesse contexto, usar uma vara para “corrigir” uma criança era tão aceitável quanto bater num escravo ou apedrejar uma mulher adúltera.

É este tipo de análise contextual que faz com que os cristãos de hoje não saiam por aí apedrejando mulheres, açoitando empregados, ou abstendo-se de um delicioso prato de frutos do mar.

Portanto, se cremos que o uso da vara vale para hoje porque é mandamento divino, também teríamos que lutar pela volta de práticas como tortura, açoites e apedrejamentos.

Além disso, ver a aplicação de castigo físico a uma criança como sendo lei de Deus é desconsiderar o principal salto teológico da cristandade: o advento de Cristo. O nascimento de Jesus foi o marco que instituiu uma nova época, uma Nova Aliança, um Novo Testamento. Uma nova mentalidade, em que a lei dura e severa é substituída pela Graça de Deus, cuja compreensão traz profundas transformações na maneira de se relacionar com Deus, com o próximo, com a humanidade e com a natureza. Um novo tempo não mais regido exclusivamente pela Lei, mas pela Graça. Não mais pelo castigo, mas pelo amor.

Neste Novo Testamento, as relações familiares e sociais não são mais estabelecidas a partir de um viés de violência, mas sim de um referencial de amor e respeito mútuo. Não se fala mais em “vara da disciplina”, mas na disciplina do amor.

“E vós, pais, não provoqueis vossos filhos à ira, mas criai-os na disciplina e na admoestação do Senhor” (Efésios 4:4)

“Disciplina" não é sinônimo de “punição física”. Há muitas maneiras de se disciplinar uma criança sem erguer uma vara, um chinelo ou uma mão sobre ela. “Dar limites” não é sinônimo de “bater”.

Negar-se a usar a política da palmada não é de maneira alguma negar-se a educar, a disciplinar ou a impor limites tão necessários na formação da criança. Nem tampouco é colocar em risco a posição de autoridade parental. É, ao contrário, a tentativa de constituir uma configuração relacional que seja diferente do modo vigente em nosso mundo já tão repleto de maus tratos, opressão e injustiça. É principalmente uma forma de “não se conformar com este século, mas transformar-se pela renovação da nossa mente” (Romanos 12:2).

Os cristãos que se orientam pelas Sagradas Escrituras possuem um genuíno desejo de serem diferentes do mundo que aí está. Precisamos, portanto, lembrar que bater nos filhos é igualar-se a este mundo, pois a cultura da palmada ainda continua a ser o padrão secular na educação infantil. Usar a punição física nos coloca na mesma fôrma social que tanto criticamos.

É fácil? Não, não é nada fácil.

Certamente o caminho alternativo do amor é muito mais difícil, exige dos pais muito mais tempo, paciência, sabedoria, auto-controle, e especialmente o exercício de seus próprios limites para não “perder as estribeiras”. Afinal, como um pai pode ensinar limites a um filho, se ele mesmo não consegue controlar os seus próprios limites no momento da fúria?

Eu não tenho dúvidas de que seria muito interessante se a comunidade cristã, em especial a evangélica, à qual também pertenço, pudesse se deslocar de uma interpretação literal e legalista do Antigo Testamento e despertar-se para esta realidade da Nova Aliança trazida por Cristo, e pudesse finalmente conhecer o que realmente acontece quando uma criança do nosso tempo recebe uma punição física, e quais são os efeitos sobre ela.

Certamente compreenderíamos muito melhor o que o apóstolo Paulo quer dizer quando nos desafia a não provocar em nossos filhos a ira, o medo, a angústia ou qualquer outro sentimento negativo que causa tantos danos à identidade de nossas crianças.

Que Deus nos ajude a sermos pais que vivem sob a Graça do Novo Testamento.

Leia também:
O que uma criança aprende quando apanha
O que uma criança sente quando apanha

sábado, 17 de dezembro de 2011

Não é estranho isso?

A sociedade já conseguiu proibir os escravos de apanhar, já criou leis rigorosas para defender as mulheres, já não bate mais nos seus "loucos", já criou instituições de defesas dos índios, já considera crime a tortura de prisioneiros, já luta contra o mal trato aos animais. Apenas as crianças ainda apanham com o consentimento social. Não é estranho isso?

O que uma criança aprende quando apanha?

O que uma criança aprende quando apanha?

. Para resolver um conflito, posso bater no outro.
. Papai diz que me ama e me bate. Posso bater em quem amo.
. Não sei se meu papai me ama.
. Eu sou feio e burro, faço sempre errado.
. Agressividade é algo normal.
. Da próxima vez, vou fazer escondido pra não apanhar.
. Se eu mentir, meu pais não saberão de nada e não apanharei.
. Se eu disser que não doeu nada, eu me vingo dele (como conseqüência, apanha mais, até doer de verdade)
. Se eu quero um brinquedo do meu amiguinho, vou bater pra ele me obedecer.

[Leia também O que uma criança sente quando apanha]

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O que uma criança sente quando apanha?

O que uma criança sente quando apanha?
. Dor
. Mágoa
. Tristeza
. Rejeição
. Dúvida
. Raiva
. Ódio
. Insegurança
. Medo
. Muito medo

[Leia também O que uma criança aprende quando apanha]


sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Educação familiar

Interessante como nessa época de matrículas escolares, as escolas fundamentam sua publicidade no método educacional que utilizam. Montessoriano, Waldorf, Pikleriano, Construtivista, etc.

Como resultado, nós pais ficamos um pouco perdidos em meio a tantas opções.

Tudo bem, este é um conhecimento importante, pois as metodologias servem como orientadoras e norteadoras das posturas pedagógicas assumidas pela escola.

Mas não podemos nos esquecer que antes da Escola, quem educa mesmo são os pais.

Independente da abordagem teórica, se é educação Montessoriana ou Educação Construtivista, o que a criança necessita acima de tudo é de uma Educação Familiar.

sábado, 3 de dezembro de 2011

O que dar a uma criança no Natal?

Vestibular. Apenas uma prova

Você vai fazer vestibular no próximo sábado.

Posso compartilhar algumas idéias com você?

Eu também já passei por isso. Pra falar a verdade, várias vezes. Algumas eu reprovei. Outras eu passei, mas depois vi que o curso escolhido não encaixava comigo e mudei de novo. Ao todo, se minha memória não falhar, foram uns seis vestibulares. Em alguns fui aprovado mas não concluí o curso, e o último que fiz foi em 1997, ano em que ingressei na Psicologia.

Hoje sou um psicólogo formado há 10 anos, atuando na área clínica, e tenho um enorme prazer pelo meu trabalho.

Por que estou lhe contando esta história? Porque gostaria de lhe falar algumas coisas:

. Vestibular é apenas uma prova. Não é a sua vida que está em jogo, nem o seu futuro. O vestibular é uma pequena parte desse futuro, mas não é tudo.

. Talvez você esteja se perguntando: “se eu não passar, o que vai acontecer comigo?” Mas posso lhe fazer outra pergunta? Se você passar, o que vai acontecer com você? Afinal, a gente nunca sabe o que vai acontecer conosco.

. Vou lhe sugerir um pequeno exercício. Olhe agora ao seu redor, e tente identificar tudo que está no seu campo de visão. O que você vê? Até onde você consegue enxergar de onde você está localizado?

. Agora vamos amplificar. Vá até a rua, coloque-se em pé na calçada, e volte a identificar o seu campo de visão. Até onde você consegue ver, a partir de onde você está? Qual o limite de sua visão neste momento? Você consegue ver a cidade toda, ou apenas a sua rua e proximidades? É possível enxergar o bairro vizinho? Você consegue visualizar o que está ocorrendo a cinco quadras de onde você está?

. Assim é a nossa vida, assim são as nossas experiências do cotidiano. Vemos apenas o que está ao nosso alcance. O resto é chute, especulação, ou adivinhação.

. O que está no seu campo de visão agora? a prova do vestibular. Mais nada. O resultado? não dá pra ver agora. Vai passar ou reprovar? Não dá pra ver agora. Vai gostar do curso escolhido? Não dá pra ver agora.

. Quando você poderá ver estas outras coisas? Quando você poderá alcançar estas respostas? Só quando você dobrar as outras esquinas, e outros campos de visão se abrirem diante de você. Porém, eles também terão seus limites, e você terá que aguardar outras e outras e outras esquinas.

. Então, caro vestibulando, permita-me lhe dizer: o que você tem agora diante de si é uma prova. Apenas uma prova.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Amor e ódio - LUIS FERNANDO VERISSIMO

[O Estado de S.Paulo - 01/12/11]


Um historiador do futuro - figura retórica tão útil quanto o Marciano Hipotético para se olhar o Brasil atual de uma certa distância- terá duas grandes dificuldades para entender que diabos se passou por aqui nos últimos anos. Uma será explicar o amor ao Lula. A outra será explicar o ódio ao Lula. 

As duas coisas transbordaram de qualquer parâmetro racional. Lula terminou seu mandato com um índice de aprovação popular inédito, e odiado na mesma proporção. O amor resistiu a escândalos, gafes, alianças indefensáveis, uma imprensa hostil e uma oposição ativa. O ódio se manteve constante até depois do mandato e não se diluiu nem numa natural simpatia pelo homem doente - o antilulismo feroz não é solidário nem no câncer.

Nosso historiador talvez desista de encontrar explicações para essa polarização extrema na disputa política e sucumba a simplificações sociorromânticas. Talvez conclua que Lula teria o amor da maioria pelo seu tipo físico e sua biografia independentemente de qualquer outra coisa, e seria aprovado pelos seus semelhantes não importa que governo fizesse.

E que o ódio ao Lula se explicava por nada menos científico ou novo no Brasil do que o preconceito social, uma repulsa atávica a quem ultrapassa sua classe e com isto ameaça todo o conceito de classe predestinada. No caso um torneiro mecânico inculto metido a grande coisa.

No fundo o que o perplexo historiador do futuro estaria dizendo é que é impossível confiar em padrões históricos como os que explicam outras sociedades para nos explicar. Não se trata de reativar a frase que o De Gaulle nunca disse, sobre nossa falta de seriedade. Somos sérios, sim. Mas também somos movidos a paixões que sabotam toda coerência histórica.

O Lula foi um catalisador de paixões, a favor e contra. E o mais extraordinário e brasileiro disso é que o amor e o ódio não têm nada a ver com os sucessos ou os fracassos do seu governo. Existem num plano a-histórico e apolítico de pura devoção ou pura raiva.

sábado, 15 de outubro de 2011

Professores

Neste Dia dos Professores, resolvi homenageá-los com um pouco de humor e diversão. Aqui vai minha singela e "poética" homenagem a eles:

PROFESSORES

Já tive professores de todas as cores,
De várias idades, de muitos humores.
Prá uns até certo tempo dediquei.
Com outros apenas um pouco estudei.

Já tive professores do tipo exibido,
Do tipo acanhado, do tipo vivido.
Casado, carente, solteiro, feliz.
Divorciado, de vários estados civis

Professores cabeça e desequilibrados.
Professores confusos, de guerra e de paz,
Mas todos eles me trazem lembranças
Ao olhar pra trás.

Procurei nos meus professores a felicidade,
Às vezes encontrei, outras fiquei só na vontade.
Hoje reconheço que foi sempre assim.

Eles são parte da minha vida, com simplicidade.
Ajudaram a construir a minha identidade.
E habitam na memória que está viva em mim.

João David C. Mendonça
[Espero que Martinho da Vila não fique brabo comigo...]

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Idade da razão...

Uma historinha de consultório pra mostrar a diferença entre o que se diz e que se entende:

- Sabia que eu vou fazer 7 anos?
- Que legal! e o que vai ter de diferente agora, que ainda não tinha quando você tinha 6?
- A minha vó falou que 7 anos é a idade da razão!
- É mesmo? Ensina pra mim como é essa idade da razão..
- É assim [olhando pra mãe]: agora, tudo que eu falar, eu vou ter sempre razão...


segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Pai, quer brincar comigo?

Veja se reconhece essa cena: você compra um presente caro pro seu filho. Ele abre o pacote, tira o brinquedo, e vai brincar com a caixa de embalagem. Ele não gostou do brinquedo? Você escolheu errado? Não necessariamente. Ele apenas está tentando lhe dizer que o sistema de valores de uma criança é diferente do adulto. Para ele, muitas vezes, mais do que o produto que ele acabou de ganhar, o que ele está valorizando mesmo é o ato de brincar. Aí a gente vê as crianças largando seus brinquedos caros para brincar com tampas de panela, vasilhas velhas, garrafas de plástico vazias.

Outra cena comum a quem tem criança em casa. Intervalo do desenho na TV, surgem as propagandas de helicópteros que voam sozinhos, bonecas que falam, cantam e dançam, carrinhos super velozes, e a criança nos comunicando: “eu quero esse”. Nova propaganda, mais um “eu quero esse”. Outra propaganda, “mãe, me dá um desse?”. Mais uma, “pai, eu quero esse”. Um dia ainda quero aproveitar meu tempo ocioso anotando quantos minutos de publicidade cabem dentro de um canal infantil de televisão.

Nada contra os brinquedos – vou avisando desde já. Além de uma boa livraria, o lugar em que mais gosto de passear é uma loja de brinquedos. Apesar dos meus quarenta e poucos anos, ainda fico fascinado pelos jogos, bonecos, carrinhos e tantas outras maravilhas que a gente encontra por lá.

E nada contra dar brinquedos a uma criança. Ao contrário, há poucas sensações no mundo comparáveis ao prazer de ver as reações de uma criança ao receber um presente. Quem gosta de crianças adora ver a alegria delas neste momento, e se alegra junto com ela.

Mas voltemos à primeira cena, e a mensagem que ela nos traz: o ato de brincar é mais importante do que o brinquedo em si. Nós adultos precisamos aprender isto com as crianças. Mais do que um brinquedo, a criança deseja brincar. Especialmente brincar com as pessoas que são significativas para ela.

Sim, é importante que a criança desenvolva também sua capacidade de brincar sozinha, como forma de exercitar sua imaginação e criatividade. Do mesmo modo, brincar com amigos é uma maneira de aprimorar suas habilidades sociais. Porém, brincar com os pais também é essencial para o processo de desenvolvimento emocional e psicológico da criança.

Se conselho fosse útil e eu pudesse dar algum para os pais, eu diria: brinque com seu filho. Independente do tipo de brinquedo que você dará às suas crianças, brinque com elas. Brincar é um modo de conectar-se com o filho, de conhecê-lo, e de valorizá-lo. Participe de uma perseguição a seres extraterrestres, leve soco na barriga numa luta intergaláctica, more com seu filho numa incrível caverna feita com lençol, enfim, libere a sua imaginação... e aproveite o Dia das Crianças tanto quanto elas. E nos outros dias do ano, continue considerando a brincadeira como uma coisa muito séria entre você e seu filho.

[Coluna de outubro na Revista Estação Aeroporto]

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Diante de uma criança

Poema de Carlos Drummond de Andrade. Com ilustrações caseiras.


Como fazer feliz meu filho?
Não há receitas para tal.
Todo o saber, todo o meu brilho
de vaidoso intelectual

vacila ante a interrogação
gravada em mim, impressa no ar.
Bola, bombons, patinação
talvez bastem para encantar?









Imprevistas, fartas mesadas,
louvores, prêmios, complacências,
milhões de coisas desejadas,
concedidas sem reticências?

Liberdade alheia a limites,
perdão de erros, sem julgamento,
e dizer-lhe que estamos quites,
conforme a lei do esquecimento?









Submeter-se à sua vontade
sem ponderar, sem discutir?
Dar-lhe tudo aquilo que há
de entontecer um grão-vizir?

E se depois de tanto mimo
que o atraia, ele se sente
pobre, sem paz e sem arrimo,
alma vazia, amargamente?









Não é feliz. Mas que fazer
para consolo desta criança?
Como em seu íntimo acender
uma fagulha de confiança?

Eis que acode meu coração
e oferece, como uma flor,
a doçura desta lição:
dar a meu filho meu amor.









Pois o amor resgata a pobreza,
vence o tédio, ilumina o dia
e instaura em nossa natureza
a imperecível alegria.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

"Parece Milagre" mas é propaganda. Mais sobre a perigosa matéria da Veja

Uma revista de grande circulação nacional deveria servir para informar a população, correto? Não necessariamente, quando estamos falando da Revista Veja.

Na tentativa de diminuir a desinformação causada pela matéria "Parece Milagre", capa da edição de 07 de setembro de 2011, vários órgãos ligados à área da Saúde estão emitindo notas oficiais e esclarecimentos à população.

A matéria parece, na verdade, não passar de uma irresponsável propaganda pra vender remédio.

Leia abaixo algumas importantes manifestações:

O milagre da irresponsabilidade
Por Ligia Martins de Almeida em 05/09/2011, Observatório de Imprensa

Nota da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica

Esclarecimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária

Nota da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia: Irresponsabilidade da Revista Veja é criticada por Associação Médica

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Irresponsabilidade da revista Veja é criticada por Associação Médica

A revista Veja trouxe em sua edição da semana passada, mais uma matéria que induz a população a erros que podem colocar em risco a sua saúde. A reportagem de capa, intitulada "Parece Milagre!", foi duramente criticada pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. 
Leia abaixo o comunicado que a SBEM fez a seus associados, e o conteúdo da carta que a associação enviou para a revista Veja:

A SBEM informa aos associados que enviou uma carta à Revista Veja em função da reportagem publicada na semana passada. O conteúdo da carta - abaixo - não foi divulgado no site da SBEM porque a diretoria está aguardando um posicionamento da revista. A diretoria da SBEM Nacional e a Comissão de Comunicação Social compartilham das providências e pedem aos associados que aguardem a publicação do conteúdo no site. Posteriormente, o texto ficará disponível para utilizar nos sites das Regionais. 

À Revista Veja,
A Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia vê com preocupação a reportagem “Parece Milagre!”, que estimula o uso, não autorizado pelas agências reguladoras, do medicamento liraglutida, com a finalidade exclusiva de emagrecimento. No momento, a única indicação reconhecida para este produto é o tratamento do diabetes. Estudos estão sendo realizados em relação ao seu emprego no tratamento da obesidade acompanhada de complicações, mas ainda não foram publicados os resultados do acompanhamento de um número suficiente de pacientes para que esta indicação terapêutica seja aceita. Enquanto isso não acontecer, não concordamos com a prescrição da liraglutida para perda de peso em pessoas não portadoras de diabetes.
A obesidade é uma doença crônica que pode ter graves consequências. Seu tratamento é difícil e são poucos os recursos terapêuticos disponíveis. Matérias como “Parece Milagre!” induzem a população a acreditar em uma solução mágica para este grave problema, o que não é verdade. Liraglutida é um medicamento novo e ainda serão necessários vários anos de farmacovigilância para correta avaliação de seus efeitos a longo prazo. A Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia se prontifica a assessorar os órgãos de imprensa nos assuntos referentes aos distúrbios endócrinos e metabólicos, de modo a evitar que informações sem embasamento científico sejam veiculadas à população.
Atenciosamente,
Dr. Airton Golbert
Presidente da SBEM
Dr. Ricardo Meirelles
Presidente da Comissão de Comunicação Social da SBEM

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Sem você, meu amor, eu ainda sou alguém

Se algum dia me pedirem para escrever sobre casamento, vou dizer que ele se divide em dois tipos: o exclusivo e o inclusivo.

O casamento exclusivo, de modo geral, começa com uma sensação muito boa. Corpo e mente celebram a presença do amor com manifestações físicas e psicológicas. As sensações que o amor provoca são reconhecidas - e desejadas - por muitos de nós.

Porém, o casamento exclusivo se aproveita desta condição e leva os cônjuges a acreditar que precisam ser a razão da existência um do outro. Fonte exclusiva de prazer mútuo.

O casamento exclusivo privilegia a relação conjugal em detrimento de outras formas de relacionamento, como a amizade, o coleguismo, o parentesco, ou a vizinhança, exigindo status de exclusividade relacional, em que um parceiro precisa ser “tudo para o outro”. Isto requer, logicamente, parceiros que olhem somente um para o outro, que esperem encontrar um no outro a totalidade que necessitam, para que dela retirem os fundamentos para a existência conjunta.

O casamento exclusivo é o mais facilmente encontrado por aí. Você o encontra nas artes, na poesia, nas novelas, nos romances, nas peças publicitárias, na música. Como por exemplo, na belíssima canção Samba em Prelúdio, composta por Baden Powell e Vinícius de Moraes.

Eu sem você não tenho porquê / porque sem você não sei nem chorar
Sou chama sem luz / jardim sem luar / luar sem amor / amor sem se dar
Eu sem você / sou só desamor / um barco sem mar / um campo sem flor
Tristeza que vai / tristeza que vem / Sem você meu amor eu não sou ninguém

Sem a pessoa amada, o poeta não é ninguém. Nada mais tem valor. Poeticamente falando, é uma idéia linda. Mas experimente transportá-la para sua vida conjugal. É problema na certa. Afinal, você não será tudo para o outro o tempo inteiro, e vice-versa. O casamento exclusivo impõe um peso que fica muito difícil para qualquer relação suportar.

O casamento inclusivo, por sua vez, só se encontra nos casais amadurecidos pela experiência da conjugalidade. O casamento inclusivo compreende que embora haja muitas coisas que só podem ser alcançadas dentro do casamento, há também muitas outras que podem ser alcançadas fora dele. O casamento inclusivo reconhece a conjugalidade como espaço de desenvolvimento das identidades de cada parceiro. Nele, as imperfeições fazem parte do processo, e as conexões não se dão apenas nos momentos bons.

Libertos da expectativa de ser tudo para o outro, podemos desfrutar, embora não o tempo todo, a agradável sensação de ser uma luz na chama de outra vida, um luar no jardim de outra pessoa. Aí sim podemos ouvir, abraçadinhos, Vinícius de Moraes.

João David C. Mendonça

[Publicado na coluna de setembro da Revista Estação Aeroporto]

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

As três coisas que descobri quando meu avião caiu

Um dos passageiros do vôo 1549, o avião que fez pouso forçado no rio Hudson, em Nova York em janeiro de 2009, relata o que passou pela sua mente naquele episódio, e nos sugere uma importante reflexão.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Amy Winehouse e a Cultura da Autodestruição

[Texto meu que está sendo publicado na edição de agosto da Revista Estação Aeroporto]




Aqui vai mais um texto falando sobre Amy Winehouse - e talvez você diga não, não, não!

Entendo sua possível aflição, mas espere um pouquinho. Afinal, pelo misto de surpresa e previsibilidade que cerca a morte de Amy, seria mesmo de se esperar que o assunto não morresse em poucos dias.

Aos 27 anos, Amy era uma artista com grande talento musical, apesar de seu pouco tempo de vida artística. Apenas dois álbuns, um terceiro quase pronto, mas uma promessa de amadurecimento e continuidade de sua obra. Promessa, não fosse o seu outro “talento”, o de autodestruir-se. Dois talentos tão antagônicos presentes numa só vida: talento criativo e “talento” autodestrutivo.

Mas vamos um pouco mais além. Talvez nem seja tão antagônico assim. Talvez a convivência destes dois talentos seja fruto de uma sociedade que vê a droga como fonte de criatividade e inspiração, e de uma cultura que valoriza o comportamento destrutivo como símbolo de rebeldia e irreverência.

Assim, a indústria do entretenimento vai criando seus ícones, transformando-os em heróis - nossos heróis morreram de overdose, lembram disso? -, e mais curioso ainda, fazendo deles referências e modelos a ser seguidos ou idolatrados.

Se criação e autodestruição formam um par, a aliança que os une é o abuso de substâncias, expressão que sempre me soou emblemática e contraditória. Afinal, a pessoa começa abusando das substâncias, mas em pouco tempo, as substâncias é que passam a abusar da pessoa.


Foi assim com muitos talentos, é assim com milhões de desconhecidos diariamente, e não foi diferente com Amy Winehouse. As substâncias assumiram o controle de sua vida, a ponto de impedir que o próprio talento criativo tivesse mais espaço. Pois, ironicamente, a bebida e as drogas que no início a faziam subir ao palco, foram exatamente as que a expulsaram pateticamente de lá, sob vaias do público, que muitas vezes alimenta a ilusão de que o abuso das drogas fica restrito a um território privado da vida, sem conseqüências mais amplas.

A autodestruição pela via das drogas não necessariamente é apenas uma escolha, como alguns tentam argumentar. Ela pode estar associada a alguma doença, uma depressão, um transtorno psicológico, ou alguma situação de crise difícil de lidar.

Mesmo quando pensamos na drogadição como uma escolha pessoal, ainda assim tal liberdade de escolha é duvidosa, pois a partir de um determinado momento, o usuário já não se encontra mais em condições de escolher, mas apenas de obedecer às escolhas da própria droga.


Visto desta maneira, relacionar-se com as drogas é como – perdoem-me a obviedade - brincar à beira de um precipício, ou como um jogo nos moldes de uma roleta russa, de onde só sai vivo quem tem sorte.

Felizmente, alguns têm essa sorte, como o guitarrista e compositor Eric Clapton. Sua experiência compartilhada no seu livro autobiográfico (Clapton, a Autobiografia - Editora Planeta, 2007) é um exemplo de superação diante da luta contra a dependência:

“Certo dia, quando minha internação estava chegando ao fim, o pânico me atingiu, e percebi que de fato nada havia mudado em mim, e eu estava voltando ao mundo mais uma vez completamente desprotegido. O ruído em minha mente era ensurdecedor, e a bebida estava em meus pensamentos o tempo todo. Fiquei chocado ao perceber que estava em um centro de tratamento, um ambiente supostamente seguro, e estava em sério perigo.
Naquele momento, quase que por si mesmas, minhas pernas cederam, e caí de joelhos. Na privacidade de meu quarto, implorei por socorro. Eu não atinava com quem estava falando, sabia apenas que havia chegado ao meu limite, não me restava mais nada para lutar. Então lembrei do que tinha ouvido falar sobre rendição, algo que pensei que jamais conseguiria fazer, que meu orgulho simplesmente não permitiria, mas entendi que sozinho eu não teria sucesso, por isso pedi socorro e, caindo de joelhos, me rendi.
Em poucos dias percebi que havia acontecido alguma coisa comigo. Um ateísta provavelmente diria que foi apenas uma mudança de atitude, e em certa medida é verdade, mas foi muito mais que isso. Encontrei um lugar a que recorrer, um lugar que sempre soube que estava ali, mas em que nunca realmente quis ou precisei acreditar. Daquele dia até hoje, jamais deixei de rezar de manhã, de joelhos, pedindo ajuda, e à noite para expressar gratidão por minha vida e, acima de tudo, por minha sobriedade. Prefiro me ajoelhar porque sinto que preciso ser humilde quando rezo e, com meu ego, isso é o máximo que posso fazer.
Se você está perguntando por que faço tudo isso, vou dizer: porque funciona, simples assim. Em todo esse tempo em que estou sóbrio, nenhuma única vez pensei seriamente em tomar um drinque ou usar alguma droga. Não tenho problema com religião e cresci com uma forte curiosidade sobre modelos espirituais, mas minha busca afastou-me da igreja e da veneração em grupo rumo a uma jornada interior. Antes de minha recuperação ter início, encontrei meu Deus na música e nas artes, com escritores como Herman Hesse, e músicos como Muddy Waters, Howlin' Wolf e Little Walter. De algum jeito, de alguma forma, meu Deus sempre esteve ali, mas agora eu havia aprendido a falar com ele.” (p. 281)

O destino de Amy Winehouse não seguiu no mesmo rumo. As substâncias abusivas a derrotaram. De sua história, ficam o talento, a criatividade, a fragilidade, e a sua última mensagem, escrita com a própria vida: “drogas matam”.


domingo, 7 de agosto de 2011

Você nunca vai fazer 28

Para quem curte música e quer se divertir com um texto publicitário inteligente: a revista Billboard desse mês traz um texto escrito pela Senhora Morte, que derruba o mito da “Maldição dos 27 anos”. Divertidíssimo. A redação é de André Kassu, com direção de arte de Marcos Medeiros, direção de criação de Luiz Sanches e ilustração de Arthur d´Araújo e Tiago Pinho.



Você nunca vai fazer 28

Oh, agora vocês falam de uma maldição dos 27 anos. Misturam teorias conspiratórias, buscam explicações na numerologia, apelam para a astrologia. Então, eu levaria Jim Morrison e Jimi Hendrix pelo simples fato de que eles nasceram sob o signo de Sagitário? Poupem-me.
Mistificar o simples é algo tão humano que me traz uma sensação rara: sorrir. Resolvi, portanto, dar algumas respostas. Não é isso que vocês vivem procurando?

Antes de qualquer coisa, Brian Jones foi um engano. Logo, toda a teoria da maldição dos 27 é baseada em um erro. Um erro primário, confesso. O meu alvo era Keith Richards, mas estava em uma péssima noite. Adoro Brian, ele é muito talentoso, acredite, pois o ouço todos os dias. Não tinha motivos para levá-lo.

Ele tinha sido expulso da banda, estava triste e minha encrenca era com Mick e Keith. Muito por causa daquela canção Sympathy for the Devil. Eu adoraria que aqueles versos tivessem sido escritos para mim. Então, resolvi usá-los contra Keith. Cheguei cantando: Please allow me to introduce myself, I'm a man of wealth and taste, I've been around for a long, long years... Mas atingi Brian.

Em troca, dei a Keith todos os anos de vida que Brian teria direito. E isso, apenas isso, explica o fato dele estar vivo. Ele não é um sobrevivente, eu que me senti culpada. Ele pode subir em coqueiros, tomar doses cavalares de bebida e continuar andando, porque eu, um reles imortal, cometi um pequeno deslize.

Voltemos aos fatos como eu vivi, ou morri. Jimi Hendrix veio depois. Mas preste atenção nessa letra: angel came down from heaven yesterday, she stayed with me just long enough to rescue me. Ok, não sou um anjo. Mas entendo a metáfora como quiser e levei ao pé da letra.

Achava que era comigo que ele estava falando. Aproveito para acabar com um dos mitos que me cercam. Jimi Hendrix não toca com Stevie Ray Vaughan, nem faz jam sessions com Charlie Parker.

Seria injusto ouvir algo que você, mortal, nunca ouviu. Sim, eu tenho um senso de justiça. Ou você acha que é à toa que inúmeras versões inéditas surgem após a morte? Que, por décadas, esses artistas mantenham a presença nos rankings de venda? Eu simplesmente sei criar um mito. Ah, se eu gostasse tanto do número 27 teria levado Stevie Ray com essa idade. E aí, sim, teríamos uma grande teoria.

Janis Joplin? Ela cantava Farewell Song. Preciso explicar muito? E, cá entre nós, acho que a sua voz não continuaria a mesma. E seria doído vê-la cantando pior. Há uma outra questão humana. Com tanto artista ruim, porque eu levo os melhores? Bem, em que momento vocês imaginaram que eu teria mau gosto musical? Eu simplesmente gosto de boa música.

Depois tem o menino Jim Morrison. Eu sou discreta, chego sem esperar. Mas quando ouvi “The End” pensei: esse rapaz sabe que eu estou chegando. E gosto de me imaginar como o beautiful friend da letra.

Ver The Doors em turnê com outros cantores quase me traz um arrependimento. Ele não merecia isso. E Val Kilmer? Pensei em adiantar a vinda de um certo diretor só por essa escolha. Mas com Jim, senti que os 27 seriam um assunto. E isto foi algo pensado. Pela primeira vez, até então. E descansei. Gary Thain do Uriah Heep? Alan Wilson do Canned Heat? Pigpen do Grateful Dead? Ah, não me subestime. Todos ao acaso. Não fosse a busca pela internet, você não conseguiria ligar um assunto ao outro.

Tive muito trabalho nesse tempo. Levei grandes do reggae, o rei do rock, pelo menos uma dúzia de rappers, o menino Lennon e o maior ídolo pop de todos os tempos. Eternizei lendas, marquei seus lugares na história. E aí, vem a tal maldição dos 27 com Kurt Cobain. Sério? O cara canta: I hate myself and I want to die, Come on death e vocês acham que ele se foi por causa dos 27? Eu simplesmente adorava a audácia desse rapaz. Gostava como ele escrevia canções para mim. Vocês não sabem, mas me doeu tanto que vesti xadrez por um mês em luto. Em troca, lhes deixei o Dave Grohl repleto de ideias. E, mais uma vez, diversos takes inéditos do Nirvana.

E agora, vocês lamentam pela Amy. Fazem novas conjecturas com os 27. Uma explicação: ela era simplesmente muito talentosa. Você não escolhe o seu playlist? Eu também. E, de quebra, preservei sua voz em Back to Black. Com o tempo, vocês esquecerão a imagem de uma artista em decadência física e se lembrarão apenas de sua grande voz. Por isso, ela não fez 28.

Encerrando: não me importa 27 ou 42. Ah, você em suas crenças não se tocou que Peter Tosh e Elvis morreram com 42? A morte é o meu trabalho, apenas. E eu não acredito em superstições. Último pedido? Olha que ironia, eu falando em último pedido. Se é para fazer uma versão de uma canção de alguém que eu levei, que seja realmente boa. Eles raramente se sentem homenageados. Digo-lhes com conhecimento.

PS: Não comentei sobre Robert Johnson porque temos um acordo."




sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Quem disse isso?

Minha família continua a me trazer alegria e felicidade no cotidiano, e, se eu fosse qualquer coisa que não um alcólatra, alegremente diria que ela é prioridade número 1 de minha vida. Mas não pode ser assim, pois sei que perderia tudo se não colocasse minha sobriedade no topo da lista. Continuo a participar do encontro dos 12 passos, e mantenho contato com o máximo possível de pessoas em recuperação. Permanecer sóbrio e ajudar outros a alcançar a sobriedade será sempre a proposta mais importante de minha vida.

Você sabe quem disse estas palavras?

ATUALIZAÇÃO:
A roqueira Rosângela Oliveira da Silva deu a resposta correta. O texto acima é do livro autobiográfico do guitarrista e compositor Eric Clapton, lançado em 2007 pela Editora Planeta. Já falei dele em posts anteriores.



segunda-feira, 1 de agosto de 2011

sábado, 23 de julho de 2011

Eric Clapton e a vitória sobre a dependência

No clima triste de hoje, em que testemunhamos um grande talento musical ser derrotado pelo consumo de drogas e álcool, quero sugerir a leitura da biografia de Eric Clapton.

No caso de Clapton, felizmente a derrota ficou do outro lado. O livro nos proporciona, além de uma viagem pelos caminhos do rock, uma história de luta, superação e recuperação diante das forças da dependência química.

Capa do livro
Trecho do livro autobiográfico de Eric Clapton.

Certo dia, quando minha internação estava chegando ao fim, o pânico me atingiu, e percebi que de fato nada havia mudado em mim, e eu estava voltando ao mundo mais uma vez completamente desprotegido. O ruído em minha mente era ensurdecedor, e a bebida estava em meus pensamentos o tempo todo. Fiquei chocado ao perceber que estava em um centro de tratamento, um ambiente supostamente seguro, e estava em sério perigo.

Naquele momento, quase que por si mesmas, minhas pernas cederam, e caí de joelhos. Na privacidade de meu quarto, implorei por socorro. Eu não atinava com quem estava falando, sabia apenas que havia chegado ao meu limite, não me restava mais nada para lutar. Então lembrei do que tinha ouvido falar sobre rendição, algo que pensei que jamais conseguiria fazer, que meu orgulho simplesmente não permitiria, mas entendi que sozinho eu não teria sucesso, por isso pedi socorro e, caindo de joelhos, me rendi.

Em poucos dias percebi que havia acontecido alguma coisa comigo. Um ateísta provavelmente diria que foi apenas uma mudança de atitude, e em certa medida é verdade, mas foi muito mais que isso. Encontrei um lugar a que recorrer, um lugar que sempre soube que estava ali, mas em que nunca realmente quis ou precisei acreditar. Daquele dia até hoje, jamais deixei de rezar de manhã, de joelhos, pedindo ajuda, e à noite para expressar gratidão por minha vida e, acima de tudo, por minha sobriedade. Prefiro me ajoelhar porque sinto que preciso ser humilde quando rezo e, com meu ego, isso é o máximo que posso fazer.

Se você está perguntando por que faço tudo isso, vou dizer... porque funciona, simples assim. Em todo esse tempo em que estou sóbrio, nenhuma única vez pensei seriamente em tomar um drinque ou usar alguma droga. Não tenho problema com religião e cresci com uma forte curiosidade sobre modelos espirituais, mas minha busca afastou-me da igreja e da veneração em grupo rumo a uma jornada interior. Antes de minha recuperação ter início, encontrei meu Deus na música e nas artes, com escritores como Herman Hesse, e músicos como Muddy Waters, Howlin' Wolf e Little Walter. De algum jeito, de alguma forma, meu Deus sempre esteve ali, mas agora eu havia aprendido a falar com ele.
Eric Clapton, A Autobiografia (Editora Planeta), p.281.

E aqui mais um interessantíssimo texto extraído do livro:

[Clique na imagem para ampliar]

terça-feira, 19 de julho de 2011

Manifesto da Associação Mundial dos Problemas

Uma resposta à Conferência Internacional de Terapia Narrativa e Trabalho Comunitário

(A "Associação Mundial dos Problemas" é uma instituição que reúne os problemas em atividade no mundo, como uma maneira de manter sua força e influência sobre as pessoas e comunidades.)

Nós, os problemas membros desta Associação, decidimos aderir a este manifesto para expressar nosso desagrado sobre tudo o que aconteceu durante a 10a. Conferência Internacional de Terapia Narrativa e Trabalho Comunitário, realizada neste mês em Salvador.

Como uma associação que reúne os problemas que afetam pessoas em todo o mundo, não nos agradamos da forma como fomos tratados neste Congresso.

Manifestamos nossa preocupação com as Práticas Narrativas, e como elas têm constantemente prejudicado o nosso intenso trabalho com as pessoas, famílias e comunidades mundo afora.

Nós não gostamos de práticas que levam as pessoas a tomar iniciativas para alcançar modos de vida preferíveis.

Nós não gostamos quando aqueles que estão sujeitos ao nosso controle começam a re-escrever as suas histórias.

Nós não gostamos quando as comunidades começam a levantar suas cabeças acima das nuvens.

Nós não gostamos quando as práticas narrativas são levadas para os locais de trabalho, escolas, ou qualquer outro lugar.

Nós não gostamos quando as famílias, incluindo seus filhos, pais, mães, ou qualquer outra pessoa, passam a descobrir e dar a atenção sobre o que ou quem eles valorizam em suas vidas.

Nós não gostamos de muitas das perguntas que os terapeutas narrativos fazem para as pessoas, que contribuem para dar-lhes um novo senso de identidade.

Tudo isso nos enfraquece e amplifica nosso sentimento de derrota, o que definitivamente não é nada bom para os nossos planos opressivos.

Portanto, nós declaramos que esta Conferência trouxe um efeito desanimador para todos os nossos associados em todo o mundo, e esperamos sinceramente que reuniões como esta não aconteçam jamais.

Assinado por
Problemas unidos contra a Vida


[Escrito por João David Mendonça, baseado no trabalho de David Epston, Michael White e muitos outros terapeutas narrativos]

To read the English version, click here.

Manifesto from the World Problems Association

A response to the Narrative Therapy and Community Work Conference

(The "World Problems Association" is an institution that brings together the most active problems in the world, as a way to keep their strength and influence upon people and communities.)


We, problems members of this Association, decided to join this manifesto to express our disgust about everything that happened during the 10th International Narrative Therapy and Community Work Conference.

As an association that gathers problems that affect people all over the world, we did not like the way we were treated in this Congress.

We express our concern with the Narrative Practices as they have consistently undermined our intensive work with people, families and communities all over the world.

We do not like practices that lead people to take initiatives to achieve preferred modes of living.

We do not like when those who are subject to our control are beginning to re-write their stories.

We do not like when communities begin to lift their heads above the clouds.

We do not like when the narrative practices are brought to the workplace or schools, or any other place.

We do not like when families, including their children, fathers, mothers, or anyone else begin to discover and give attention about what or whom they value in their lives.

We do not like many of the questions that narrative therapists do to people, that contributes to give them a new sense of identity.

All of this makes us weak and amplifies our sense of defeat, which is definitely not good for our oppressive plans.

Therefore, we declare that this Conference was very disheartening for all of our associates all around the world, and we sincerely hope that meetings like this do not happen anymore.

Signed by
Problems joined against Life


[Written by João David Mendonça, inspired by the work of David Epston, Michael White, and many others narrative therapists)

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Sabedoria

- Mestre, como faço para me tornar um sábio?
- Boas escolhas.
- Mas como fazer boas escolhas?
- Experiência.
- E como adquirir experiência, mestre?
- Más escolhas.


[Extraído de algum lugar da internet]

quarta-feira, 6 de julho de 2011

O amor bom é facinho

[Por IVAN MARTINS]     [Fonte: Revista Época ]
Por que as pessoas valorizam o esforço e a sedução?

Há conversas que nunca terminam e dúvidas que jamais desaparecem. Sobre a melhor maneira de iniciar uma relação, por exemplo. Muita gente acredita que aquilo que se ganha com facilidade se perde do mesmo jeito. Acham que as relações que exigem esforço têm mais valor. Mulheres difíceis de conquistar, homens difíceis de manter, namoros que dão trabalho - esses tendem a ser mais importantes e duradouros. Mas será verdade?

Eu suspeito que não.

Acho que somos ensinados a subestimar quem gosta de nós. Se a garota na mesa ao lado sorri em nossa direção, começamos a reparar nos seus defeitos. Se a pessoa fosse realmente bacana não me daria bola assim de graça. Se ela não resiste aos meus escassos encantos é uma mulher fácil – e mulheres fáceis não valem nada, certo? O nome disso, damas e cavalheiros, é baixa auto-estima: não entro em clube que me queira como sócio. É engraçado, mas dói.

Também somos educados para o sacrifício. Aquilo que ganhamos sem suor não tem valor. Somos uma sociedade de lutadores, não somos? Temos de nos esforçar para obter recompensas. As coisas que realmente valem a pena são obtidas à duras penas. E por aí vai. De tanto ouvir essa conversa - na escola, no esporte, no escritório - levamos seus pressupostos para a vida afetiva. Acabamos acreditando que também no terreno do afeto deveríamos ser capazes de lutar, sofrer e triunfar. Precisamos de conquistas épicas para contar no jantar de domingo. Se for fácil demais, não vale. Amor assim não tem graça, diz um amigo meu. Será mesmo?

Minha experiência sugere o contrário.

Desde a adolescência, e no transcorrer da vida adulta, todas as mulheres importantes me caíram do céu. A moça que vomitou no meu pé na festa do centro acadêmico e me levou para dormir na sala da casa dela. Casamos. A garota de olhos tristes que eu conheci na porta do cinema e meia hora depois tomava o meu sorvete. Quase casamos? A mulher cujo nome eu perguntei na lanchonete do trabalho e 24 horas depois me chamou para uma festa. A menina do interior que resolveu dançar comigo num impulso. Nenhuma delas foi seduzida, conquistada ou convencida a gostar de mim. Elas tomaram a iniciativa – ou retribuíram sem hesitar a atenção que eu dei a elas.

Toda vez que eu insisti com quem não estava interessada deu errado. Toda vez que tentei escalar o muro da indiferença foi inútil. Ou descobri que do outro lado não havia nada. Na minha experiência, amor é um território em que coragem e a iniciativa são premiadas, mas empenho, persistência e determinação nunca trouxeram resultado.

Relato essa experiência para discutir uma questão que me parece da maior gravidade: o quanto deveríamos insistir em obter a atenção de uma pessoa que não parece retribuir os nossos sentimentos?

Quem está emocionalmente disponível lida com esse tipo de dilema o tempo todo. Você conhece a figura, acha bacana, liga uns dias depois e ela não atende e nem liga de volta. O que fazer? Você sai com a pessoa, acha ela o máximo, tenta um segundo encontro e ela reluta em marcar a data. Como proceder a partir daí? Você começou uma relação, está se apaixonando, mas a outra parte, um belo dia, deixa de retornar seus telefonemas. O que se faz? Você está apaixonado ou apaixonada, levou um pé na bunda e mal consegue respirar. É o caso de tentar reconquistar ou seria melhor proteger-se e ajudar o sentimento a morrer?

Todas essas situações conduzem à mesma escolha: insistir ou desistir?

Quem acha que o amor é um campo de batalha geralmente opta pela insistência. Quem acha que ele é uma ocorrência espontânea tende a escolher a desistência (embora isso pareça feio). Na prática, como não temos 100% de certeza sobre as coisas, e como não nos controlamos 100%, oscilamos entre uma e outra posição, ao sabor das circunstâncias e do tamanho do envolvimento. Mas a maioria de nós, mesmo de forma inconsciente, traça um limite para o quanto se empenhar (ou rastejar) num caso desses. Quem não tem limites sofre além da conta – e frequentemente faz papel de bobo, com resultados pífios.

Uma das minhas teorias favoritas é que mesmo que a pessoa ceda a um assédio longo e custoso a relação estará envenenada. Pela simples razão de que ninguém é esnobado por muito tempo ou de forma muito ostensiva sem desenvolver ressentimentos. E ressentimentos não se dissipam. Eles ficam e cobram um preço. Cedo ou tarde a conta chega. E o tipo de personalidade que insiste demais numa conquista pode estar movida por motivos errados: o interesse é pela pessoa ou pela dificuldade? É um caso de amor ou de amor próprio?

Ser amado de graça, por outro lado, não tem preço. É a homenagem mais bacana que uma pessoa pode nos fazer. Você está ali, na vida (no trabalho, na balada, nas férias, no churrasco, na casa do amigo) e a pessoa simplesmente gosta de você. Ou você se aproxima com uma conversa fiada e ela recebe esse gesto de braços abertos. O que pode ser melhor do que isso? O que pode ser melhor do que ser gostado por aquilo que se é – sem truques, sem jogos de sedução, sem premeditações? Neste momento eu não consigo me lembrar de nada.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Drogas e gravatas

por Contardo Calligaris - Folha de São Paulo

NA TERÇA, 14 de junho, a Folha publicou, na Primeira Página, as imagens de um homem de paletó e gravata que comprava e fumava um cachimbo de crack, numa rua do centro de São Paulo.

No último domingo, Suzana Singer, ombudsman do jornal, em sua coluna, perguntou: "Por que a Folha decidiu expor dessa forma um suposto viciado?". A Secretaria de Redação respondeu: "A política do jornal vinha sendo não resguardar a identidade dos usuários de crack em locais públicos. Não vimos motivo para alterarmos o padrão porque a personagem, desta vez, vestia paletó e gravata".

Em suma, a reportagem queria mostrar que "o fenômeno do crack não se confunde com a pobreza e não atinge apenas moradores de rua". A reportagem notava, aliás, que, entre os "usuários eventuais, que vão à região para fumar uma pedra", há até "senhores com cerca de 60 anos vestindo terno".

De repente, dei-me conta de que, ao longo dos anos, vi dezenas de fotografias de drogados errando pela cracolândia, mostrados sem disfarce, mas não tenho memória de seus rostos. É como se eles não fossem indivíduos -apenas genéricos "noias", como eles são chamados pelas ideias paranoicas que os acometem. No entanto, o engravatado da foto de terça-feira era diferente: ele era reconhecível, singular -talvez porque sua aparência deixava supor que ele não tivesse se transformado (ainda?) num noia.

O crack é hoje o protótipo da droga que leva rapidamente à perdição. Será que a foto do engravatado mostra que existem usuários de crack que não se tornam noias? Será que é possível um uso lúdico do crack?

Não sei dizer, mas, ao ler as memórias de Bill Clegg, "Retrato de um Viciado Quando Jovem" (Cia. das Letras), qualquer leitor pode sentir quase na pele a prepotência com a qual a fissura se instala ao centro da vida de um usuário de crack, por mais engravatado que seja.

O texto é comovedor, pela ingenuidade do viciado e de nós, leitores, que, como o viciado, inevitavelmente, a cada vez, acreditamos que ele voltará à sua vida depois de só mais um cachimbo. Comovedor e também exasperante: como é que o cara não consegue se controlar e conciliar sua vida amorosa e profissional com uma tragada de vez em quando? "Segura tua onda, rapaz", a gente fica a fim de gritar.

Trivialidade: a virulência da fissura, assim como a natureza da dependência, é diferente para cada droga. Engravatado à parte, o crack transforma quase imediatamente seus consumidores em adictos, enquanto há pessoas que, durante a vida toda, fumam só um cigarro ou um baseado por semana.

Outra trivialidade: talvez tão importante quanto as qualidades específicas de cada droga seja o fato de que, por alguma diferença de personalidade e disposição, há usuários que se perdem na toxicomania e outros que parecem nunca correr esse risco.

A clínica com adolescentes me ensinou isto: em geral, quem se vicia não é tanto quem acha sua vida dolorosa ou injusta, mas quem a acha chata, ou seja, quem não consegue se interessar por sua própria vida.

É possível se drogar porque a vida já é uma festa, e, quem sabe, com mais uma bola, ela se torne mais alegre. Essa conduta é sempre menos nociva da que consiste em drogar-se pela incapacidade de achar graça na vida que se tem. Quem se droga porque acha a vida chata tende a trocar a vida pela droga.

Nos últimos dias, fala-se muito da descriminalização da maconha. Estreou "Quebrando o Tabu", de Fernando Grostein; houve a intervenção de Fernando Henrique Cardoso (que é, aliás, âncora do filme de Grostein), e houve a liberação das marchas da maconha pelo STF.

Vários leitores pediram que expressasse minha opinião. Aqui vai: concordo com o projeto de descriminalizar o consumo de maconha, mas discordo de quem afirma que qualquer uso de maconha seria inócuo. Nos adolescentes, por exemplo, um consumo diário e intenso (solitário, já de manhã) é frequentemente o sinal de uma depressão que é MUITO difícil vencer, uma vez que ela se instala.

Entendo que alguém, mofando num tédio mortal (e inexplicado), chegue à conclusão de que a vida sem maconha é uma droga. Mas, infelizmente, em regra, a droga aprofunda o vazio que ela é chamada a compensar ou corrigir. Ou seja, talvez a vida sem maconha seja uma droga, mas a maconha sem vida também é.

ccalligari@uol.com.br
@ccalligaris

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Confiança na relação

Semana passada tive a honra de participar, junto com a psicóloga Luciane Altenburg, do programa Falando SC, dirigido pela jornalista Naia Coral. O assunto: ciúme e confiança na relação. Para quem não viu e tem interesse no assunto, aqui vai a íntegra do programa, dividido em quatro partes.